terça-feira, 19 de maio de 2009

Sorriso

Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir [...] é rir sem fazer ruído e
executando contracção muscular da boca e dos olhos. [...]

O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao
imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca
tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do
que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse
precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede
em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.

Não há dois sorrisos iguais. [...] temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu
contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança,
o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre.
E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.

O Sorriso (este, com maiúscula) vem sempre de longe. É a manifestação de uma
sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa
definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um
frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque
não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são
rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas
fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi
que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.

Mas eu falava de gente, de nós, que fazemos a aprendizagem do sorriso e dos sorrisos
ao longo da vida própria e das alheias. [...]
A tudo isto é que eu chamo sabedoria. [...]
Dir-me-ão que não cabe tanto no sorriso. Eu digo que cabe. Soube-o a noite passada,
quando foi ele a única resposta para a insónia e para os monstros do pesadelo nascido no
sono onde o corpo acabou por deslizar, cansado e aflito. Sorrir assim, mesmo sem olhos que
nos recebam, é o verbo mais transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamente
transmissível. O ponto está em haver quem o conjugue.



José Saramago


Amén, grande velhadas!

ritzm